Liberdade de Expressão na Era Digital: Criminalização Excessiva ou Necessária?
- Daniela dos Santos Marto
- 5 de jul.
- 5 min de leitura
Por Daniela dos Santos Marto
Aluna finalista da NOVA School of Law
Artigo vencedor do Concurso de Escrita, com apoio da MFA Legal, avaliado pela Dra. Juliana Vasconcelos Senra
Nos tempos recentes, a proliferação de discursos radicais, especialmente no meio digital, trouxe à tona uma tensão central entre dois conceitos fundamentais em sociedades democráticas: a liberdade de expressão, essencial para que as vozes de todos possam ecoar livremente; e a dignidade humana, que surge como uma “trave-mestra da sustentação e legitimação” (1) na Constituição da República Portuguesa (doravante CRP).
O discurso de ódio é, de acordo com o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto (2), “um discurso ilegal de incitação publica à violência ou ao ódio com base em determinadas características (…); põe em causa os direitos e os valores fundamentais em que assentam as sociedades democráticas, prejudicando não só as vítimas desse discurso, mas também a sociedade em geral”. A sua eventual criminalização suscita questões jurídicas, éticas e sociais sobre os limites da liberdade de expressão e do papel do direito penal na sua tutela. O desafio reside em definir até que ponto poderá a liberdade de expressão ser exercida, uma vez que, quando desvinculada de um exercício responsável, pode rapidamente converter-se em algo nocivo.
A CRP, no n. º1 do artigo 37.º, consagra a liberdade de expressão e de informação, sendo garantida a todos a possibilidade de “exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações”. No entanto, no n.º 2 do artigo 18.º da CRP, surge a possibilidade de restringir direitos fundamentais. Segundo o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 81/84 (3) “a liberdade de expressão [...] não é um direito absoluto nem ilimitado”. No mesmo sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (Processo 5551/19.0T9LSB.L1-5), afirma que sempre que uma determinada conduta “vise unicamente exprimir ofensa, humilhação, discriminar ou estigmatizar pessoas ou certos grupos de indivíduos”, deve haver uma proibição e punição, “não sendo reconduzível ao exercício da liberdade de expressão”. Pode, portanto, haver limites a certos direitos fundamentais, desde que com respeito pelo princípio da proporcionalidade. No Código Penal português (doravante CP), o discurso de ódio encontra o seu enquadramento em inúmeros tipos legais de crime, sendo o principal o artigo 240.º. Neste artigo há uma penalização do incitamento ao ódio e à violência, e a moldura penal aplicável é de 6 meses a 5 anos.
Perante o exposto, impõe-se uma reflexão sobre os fundamentos e os limites da criminalização do discurso de ódio. A tutela penal deve proteger a dignidade humana e a convivência pacífica numa sociedade que se pretende ser coesa. Porém, à luz do princípio da subsidiariedade, a intervenção penal deve ser reservada aos casos em que tal tutela se revele como uma medida de última ratio, devendo sempre respeitar o princípio da legalidade.
Existe o risco de se criminalizar de modo exorbitante certas condutas sob o pretexto de combater o ódio, o que pode produzir um efeito inibidor sobre a liberdade de expressão (chilling effect) (4) e abrir caminho para mecanismos excessivamente rígidos que enfraquecem o espírito democrático. Sob outra perspetiva, a omissão de ação pode conduzir à normalização dos mesmos e resultar no agravamento das suas consequências. Importa delinear a fronteira entre o discurso que tem de ser protegido e o discurso lesivo. Somente quando são ultrapassados limites legais é que se pode falar em lesão efetiva de bens jurídicos.
Este debate ganha contornos mais complexos à luz da era digital, pois as plataformas online vieram amplificar o alcance do discurso de ódio, sendo verdadeiros canais para a sua difusão rápida e massiva. Há inúmeros desafios que acompanham a expansão crescente deste discurso de ódio. Temos, primeiramente, a questão da competência territorial, que leva a uma necessidade de cooperação internacional, pois é difícil definir qual a jurisdição aplicável sendo as plataformas acessíveis a todos. Cumpre ainda mencionar que muitos perfis nas redes sociais são anónimos, sendo necessário tomar medidas para identificar quem está por detrás de um ecrã, o que torna necessária a cooperação entre as plataformas e o Estado.
É ainda de salientar os algoritmos das redes sociais, que privilegiam conteúdos mais controversos, pelo que existem “echo chambers” (5), sendo o discurso de ódio muitas vezes exacerbado, aceite como normal e promovido de modo muito mais ampliado. Petros Iosifidis e Nicholas Nicoli, em “Digital Democracy, Social Media and Disinformation” (6), demonstram que uma “articulação equilibrada entre a governação da internet e a salvaguarda da liberdade de expressão ainda não está assegurada”. Neste contexto, e perante os desafios provenientes do ambiente online, há uma necessidade urgente de adaptação das normas jurídicas, bem como da criação de novas abordagens regulatórias.
No meu juízo, é imperativo um investimento robusto em medidas de prevenção e sensibilização. A promoção da empatia e do respeito no ambiente digital deve começar cedo, através da integração sistemática de temas como o cyberbullying e os direitos digitais no currículo obrigatório das escolas. Existem iniciativas atualmente, contudo, demonstram-se ineficazes e carecem de mais investimentos e abrangência, pois são meramente pontuais. Ademais, considero fulcral a existência de incentivos às plataformas digitais para uma adoção de políticas de moderação mais eficazes e transparentes. A criação de acordos e protocolos entre o Estado e estas plataformas, poderá facilitar o papel do Direito na ação quanto a tais temas, conduzindo a respostas mais rápidas e equilibradas.
O combate ao discurso de ódio não pode prescindir de uma abordagem jurídica muito firme, mas ponderada, que deve ser conjugada com pedagogia. A liberdade de expressão deverá ser protegida enquanto um alicerce democrático, mas não deve ser instrumentalizada e servir de escudo para práticas que incitem à exclusão e violência. Neste sentido, o artigo 240.º do CP afigura-se, do meu ponto de vista, firme e equilibrado. A sua manutenção é essencial para garantir que o exercício da liberdade de expressão não deve significar abdicar da proteção da dignidade humana.
Em síntese, o Direito Penal tem um papel importante e determinante, principalmente nos casos mais graves que dizem respeito ao discurso de ódio. Contudo, o seu uso deve ser criterioso e subsidiário, sobretudo num cenário digital que exige uma abordagem interdisciplinar. Aplicá-lo de modo indiscriminado e como solução única, seria tão desproporcional quanto tentar utilizar um extintor de incêndio para apagar uma vela. É uma medida excessiva que, para além de não resolver muitas vezes o cerne dos problemas, incorre no perigo de apagar a chama da liberdade.
Citações
(1) Canotilho, Gomes e Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa ...” P.198;
(2) Acórdão do Tribunal da Relação do Porto Processo 5551/19.0T9LSB-A.P1;
(3) Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 81/84(publicado no Diário da República, II Série, n.º 26, de 31 de janeiro de 1985, p. 1025);
(4) O “chilling effect”, também conhecido como efeito inibidor, ocorre quando existe uma regulamentação tal que acaba por desencorajar o exercício de um direito fundamental. Esta ideia está amplamente associada com o exercício da liberdade de expressão, tendo tido origem no U.S. Supreme Court;
(5) “Echo Chambers” refere-se a um fenómeno comum nas redes sociais de ampliação e confirmação das crenças de um indivíduo ou mais indivíduos quando disseminadas em massa;
(6) Iosifidis, P., & Nicoli, N. Digital democracy, social media and disinformation. Routledge.
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