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O Sofrimento Psíquico Invisível: Quando o Crime Esconde um Transtorno

  • Foto do escritor: Susana Pinto Almeida
    Susana Pinto Almeida
  • 14 de mai.
  • 6 min de leitura

Por Susana Pinto Almeida

Psiquiatra Forense


Entre a lei e o sofrimento: o papel da saúde mental forense


A saúde mental forense constitui um domínio especializado da psiquiatria que opera na confluência dos sistemas de saúde, justiça, segurança social e da tutela dos direitos humanos. Intervém em contextos judiciais e penitenciários, com o objectivo não apenas de avaliar e tratar, mas de proteger a saúde, a dignidade e promover a reintegração social de pessoas com doença mental em contacto com o sistema penal. Requer, por isso, uma abordagem multidisciplinar, ética e tecnicamente especializada, centrada na reabilitação e na prevenção da reincidência. Trata-se de uma actuação dirigida a uma população duplamente vulnerável — indivíduos cujo sofrimento psíquico, muitas vezes não diagnosticado nem tratado, se manifesta através de comportamentos que desafiam os limites entre a norma e o delito —, o que impõe um compromisso institucional robusto com a garantia dos seus direitos fundamentais.


Neste contexto, em Portugal, a população psiquiátrica forense — designação que aqui se propõe para englobar três subpopulações distintas: os indivíduos inimputáveis, os reclusos preventivos e os reclusos condenados com doença mental — tem sido historicamente negligenciada. Esta invisibilidade social e política torna-se ainda mais preocupante quando se observa que muitos destes cidadãos permanecem institucionalizados em contextos não clínicos — como os estabelecimentos prisionais —, mesmo estando legalmente contemplado no Decreto-Lei 70/2019 poderem ser encaminhados para unidades de psiquiatria forense. A falência na concretização deste direito fundamental à saúde mental revela não um vazio legal, mas a ausência de condições estruturais e políticas para que ele se torne efectivo, pois apesar do enquadramento jurídico existir, a realidade prática continua a revelar uma exclusão sistemática e silenciosa desta população.

 


Uma realidade invisível e negligenciada


Esta realidade de exclusão e inadequação assistencial assenta num conjunto de factores interdependentes, entre os quais se destaca a escassez de vagas nas unidades de psiquiatria forense não prisionais, que, devido à sua reduzida capacidade, priorizam o internamento de inimputáveis. A esta limitação estrutural soma-se a inexistência de uma área da psiquiatria especificamente vocacionada para o meio prisional, traduzida não apenas na ausência de serviços organizados, mas também na limitada preparação dos psiquiatras que exercem funções nos estabelecimentos prisionais. Muitos destes profissionais actuam sem formação específica para reconhecer, avaliar e intervir adequadamente nos casos de doença mental grave entre a população reclusa. Mesmo quando existem psiquiatras nas prisões, a falta de competências específicas direccionadas e a ausência de uma abordagem estruturada dificultam a identificação precoce, a sinalização e o tratamento eficaz destes doentes, o que acaba por perpetuar ciclos de invisibilidade clínica e exclusão assistencial.


A situação agrava-se quando, por necessidade de internamento em unidades clínicas civis, se exige a custódia contínua destes reclusos por guardas prisionais — profissionais já em número insuficiente —, o que representa um encargo logístico adicional e contribui para a relutância em proceder a tais transferências. A conjugação da sobrecarga dos recursos humanos com a ausência de um modelo assistencial adequado ao meio prisional, conduz à permanência destes doentes em contextos desajustados às suas necessidades clínicas. A tudo isto se junta uma resistência institucional implícita — ainda que raramente verbalizada — à inclusão das subpopulações de reclusos preventivos e condenados em estruturas clínicas civis. Esta resistência é alimentada por um estigma persistente que, por razões institucionais e históricas, tende a não priorizar esta população na alocação de recursos terapêuticos diferenciados. O resultado é a manutenção desta população psiquiátrica forense em ambientes não terapêuticos, frequentemente até à sua libertação, com violação dos princípios clínicos e dos direitos fundamentais. Nestes contextos, um comportamento criminal pode não ser mais do que a manifestação visível de um transtorno mental por diagnosticar ou por tratar — uma face penal de um sofrimento que permanece invisível.


Apesar dos avanços legais consagrados no Decreto-Lei 70/2019 e na Lei 35/2023, a sua efectiva concretização continua por cumprir, em grande parte porque carecem de uma política pública estruturada de saúde mental forense que lhes dê suporte, diretrizes claras e meios operacionais. Sem uma política nacional que defina objetivos, recursos, rede de serviços e modelo de articulação interministerial, os dispositivos legais, por mais avançados que sejam, permanecem ineficazes. A exclusão destas subpopulações da rede assistencial prevista traduz-se, assim, numa contradição flagrante entre os princípios legais e a prática institucional, perpetuando a manutenção destes doentes em unidades psiquiátricas prisionais, à margem das melhores práticas clínicas e das orientações de direitos humanos.


Esta exclusão histórica, marcada por omissão e estigma, impõe um silêncio institucional que atravessa décadas e traduz-se numa dupla marginalização: pela doença mental e pela associação ao crime, frequentemente resultante da ausência de diagnóstico, tratamento atempado ou acompanhamento continuado. Quando o sistema penal responde ao surto psicótico com a cela em vez do hospital, e quando a pena substitui o plano terapêutico, o que se oculta atrás do crime é um transtorno por tratar. A inexistência de uma verdadeira política de saúde mental forense em Portugal impede que qualquer esforço de operacionalização se concretize de forma eficaz. Estas dificuldades práticas não ocorrem à margem da lei, mas antes apesar dela. De facto, os diplomas legais mais recentes reconheceram a necessidade de integrar saúde e justiça, mas a sua concretização continua por cumprir.



Avanços legais e a persistência da exclusão


A prevalência de perturbações mentais graves em meio prisional é alarmantemente superior à observada na população geral, com destaque para quadros de psicose, perturbações do humor, perturbações da personalidade e comorbilidades associadas ao uso de substâncias. O espaço prisional, por inerência, não é terapêutico: a sobrelotação, o isolamento social, a ausência de estímulos, a rigidez disciplinar e a violência estrutural agravam o sofrimento psíquico e promovem a deterioração clínica dos reclusos com doença mental. Acresce a ausência de protocolos eficazes de rastreio e triagem, a escassez de profissionais de saúde mental e a falta de formação específica dos técnicos do sistema prisional, o que compromete gravemente a identificação precoce e o acompanhamento adequado destes doentes.


Estas lacunas têm consequências devastadoras. Muitos reclusos não são reconhecidos como doentes e, por isso, não recebem qualquer forma de tratamento. Outros, mesmo após diagnóstico, não dispõem de recursos adequados ou de encaminhamento para unidades vocacionadas. Este ciclo de invisibilidade e omissão perpetua o agravamento do quadro clínico, aumenta o risco de comportamentos autolesivos ou violentos e compromete seriamente qualquer tentativa de reintegração social após a libertação. Perante este cenário de omissão estrutural, torna-se evidente que legislar não basta. É imperioso construir uma política pública que traduza os princípios jurídicos em intervenções clínicas concretas.

 


A necessidade urgente de uma política de saúde mental forense


Sem uma política nacional de saúde mental forense clara, eficaz e interministerialmente articulada, os diplomas legais existentes permanecerão letra morta. O Decreto-Lei 70/2019 e a Lei 35/2023 representaram marcos legislativos importantes, mas não criaram, por si só, as condições necessárias à transformação do sistema. Continuamos sem uma estratégia que defina prioridades, mobilize recursos, estabeleça protocolos e assegure a formação adequada dos profissionais que trabalham com esta população.


Esta ausência de visão política impede o país de garantir o direito à saúde mental aos cidadãos mais vulneráveis: aqueles que, além da doença mental grave ou por causa dela, se encontram em conflito com a lei. A resposta do Estado continua a ser marcada pela desarticulação, pela omissão e por uma lógica de contenção, e não de cuidado. Para que o sofrimento psíquico deixe de ser invisível — e o crime, um disfarce de um transtorno não tratado —, é urgente abandonar a retórica legalista e construir uma política pública de saúde mental forense que não apenas reconheça o direito à saúde, mas o torne efetivamente exequível dentro e fora dos muros do sistema prisional.




Referências


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Smith, A., Ogunwale, A., Moura, H. F., Bhugra, D., Ventriglio, A., & Liebrenz, M. (2024). Mental health and justice beyond borders: Global crises, sociopolitical determinants, and contemporary practices in forensic psychiatry. Critical Public Health, 34(6), 784–793. https://doi.org/10.1080/09540261.2024.2346076 (consultado em 9 de maio de 2025)

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