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Falar ou não falar? – eis a questão

  • Foto do escritor: Rui Patrício
    Rui Patrício
  • há 2 dias
  • 7 min de leitura

Por Rui Patrício

Advogado | Professor Convidado da NOVA School of Law

Nota: Este texto é uma versão muito reduzida e adaptada / alterada do meu texto “The Silence of the Lambs”, in Depender da Bondade de Estranhos e Outros Textos “Leves” Sobre a “Leveza” do Processo Penal, Almedina, 2022, págs. 173-187.



Deve o advogado falar ou manter silêncio público, seja quando interpelado seja quando o não é, mas se impõe uma palavra, nos seus casos mediatizados? (Nos seus e não noutros, pois não me dedico neste texto à moda do comentário.) E a pergunta é tanto mais pertinente quando o assunto da mediatização da justiça, penal especialmente, mas não só, está, não no olho do furacão (que é a sua parte mais calma), mas sim na sua parede, fenómeno que tem vindo a crescer e assim se adivinha que continue. Na verdade, o interesse público por processos, em especial criminais, veio para ficar, e cresceu tanto que hoje em dia, entre nós, a mediatização da justiça criminal em geral e de certos processos em particular é, ela mesma, um fenómeno, objeto de análise, de preocupação e, também, de notícias. Quando a notícia se torna notícia, isso é sinal de uma grande intensidade ou relevância da primeira (e também pode ser um sinal de preocupação). Podemos não gostar, podemos lamentar as causas e, ainda mais, os efeitos, podemos achar que estávamos melhor num mundo antigo em que o sistema de Justiça funcionava no recato. Mas, gostando ou não, o que não convém que se faça é enfiar a cabeça na areia, como se o tema não existisse. Existe, e de que maneira, e impõe – entre muito mais – a pergunta com que este texto abre.


E a resposta à mesma, a meu ver, só pode ser, em geral, um sim, que apenas conhecerá exceção em casos especiais e raros, nos quais calar seja estrategicamente aquilo que melhor convém ao cliente e ao caso. Ou seja, por aqui já se vê que entendo que se deve falar em homenagem aos interesses dos clientes e dos casos (e até porventura da justiça e do esclarecimento público), e independentemente agora de tratar a questão deontológica, mormente a da interpretação do vetusto e anquilosado artigo 93.º do EOA.


A entrada do processo na esfera pública tem efeitos, e muitas vezes tem inúmeros e fortes, na honra, no bom nome e na vida dos clientes que estão ou são envolvidos nos processos alvo de holofotes. Perante isso, o que fazer? E, falando, como e quanto?  Concretizemos, que é sempre uma boa forma de testar as teorias ou as “boas intenções”. Após uma diligência judiciária, por exemplo em inquérito, que já foi mediatizada ainda antes de começar, e “martelada” de meia em meia hora enquanto durava no recato da sala onde decorria, com a afirmação repetida das suspeitas e das imputações, o advogado sai e apontam-lhe à cara os holofotes e os microfones, e fazem-lhe perguntas. Que deve ele fazer, para defesa da honra, do bom nome, et cetera, do seu constituinte, o qual, nos dias anteriores e nesse ou nas últimas horas, de meia em meia hora, desfilou pelos media carregado do rol de suspeitas e imputações que levaram àquela – já convenientemente publicitada – diligência? Deve virar costas, sem mais, com holofotes e microfones em atropelo atrás de si, a insistir nas questões? Deve dizer que nada diz? Se o fizer, qual a interpretação da comunidade?  Ora, a comunidade não interpretará essa fuga e/ou esse silêncio a favor do seu cliente/constituinte, o mais das vezes, senão mesmo todas. É verdade que falar pode já não mudar nada, porque a comunidade talvez até nem esteja já disponível para interpretar seja o que for, pois é sabido que a imputação e a suspeita têm sempre mais picante e suscitam sempre mais apetite do que a defesa, da mesma forma que tem mais espaço mediático a mordidela do homem no cão do que o inverso. Mas se o advogado der de costas ou de ombros ou se persistir no mutismo, aí seguramente é que nada virá a favor. Convém, aliás, não esquecer que tudo nesta vida, desde que estejam envolvidas duas pessoas ou mais, passa uma mensagem, incluindo o silêncio, o encolher de ombros, o virar de costas; tudo é linguagem, tudo é comunicação, tudo tem um significado.


Assim, perante os holofotes e os microfones, ou em situações equivalentes, penso que o advogado deve, em princípio, falar – salvo se os interesses do seu constituinte (apenas e só esses, e nunca os do advogado), numa visão estratégica ou tática, mas prevalecendo sempre a primeira, ditarem que se cale. Mas na maior parte das vezes deve falar, e mesmo em situações em que não seja interpelado, mas em que se imponha intervir publicamente em defesa do seu cliente e do seu caso. Julgo que é seu dever fazê-lo. Com a contenção e a sobriedade que for capaz naquele momento, claro está.


Mas cuidado com a medida de contenção e de sobriedade que exigem ao advogado, especialmente quando interpelado. Experimentem, aliás, ver uma bateria de holofotes, câmaras e microfones apontada à cara, com as mesmas – e nem sempre esclarecidas – questões a serem “matraqueadas”, e depois disso falem-me com conhecimento de causa de silêncio, de contenção e de sobriedade, bem como da pureza e da beleza do silencioso mundo antigo nestas coisas dos processos e, bem assim, de leituras literais, puras e velhotas dos antigos princípios da deontologia. Até lá sejam cautos no juízo que fazem sobre os advogados que se veem nestes assados e do seu comportamento. Este é um daqueles casos onde o empirismo ensina quase tudo e onde o que aprendeu na universidade não ajuda, apenas o que se aprendeu nas esquinas da vida. 


Mas a sobriedade e a contenção devem ser tentadas, isso sem dúvida. E diz-me a experiência que quanto mais o advogado pensar nisso e se preparar antes da hora da verdade, melhor (ou menos mal) se sairá. Mas – insisto, e fora as exceções – deve falar, indiscutivelmente, com clareza, com firmeza, sem entrar em detalhes – a não ser que seja mesmo necessário, e às vezes é, tal é a força do ruído anterior – e tentando (e não passa disso, de tentativa) reequilibrar as coisas, desequilibradas nos dias anteriores ou nos momentos anteriores a favor da suspeita e da imputação. 


Isto para mim é muito claro, e julgo que agir de outra forma – embora respeite quem segue caminho diferente – não é a melhor forma de defender os interesses que nos são confiados. E, por outro lado, também não é a melhor forma de o advogado cumprir os deveres de cidadania que tem, nomeadamente no que respeita à transparência na discussão pública de questões relevantes (ou tornadas relevantes pela força do ruído mediático). (Questão diversa, embora amiúde se intrometa na ou se atravesse nesta, é a do segredo de justiça, mas deixemo-la por ora posta de lado.)


E não pode ser o cliente a falar, em vez do advogado? Pode, mas muitas vezes não deve e nalgumas não pode, por várias razões – cumulativas ou alternativas – que, aqui e agora, não desenvolvo.  

       

Mas há ainda outra razão para falar, para além da pura defesa do seu cliente na esfera pública. E essa outra razão prende-se com a possibilidade de o que se passa fora do processo poder influenciá-lo. Influenciará ou não, depende, mas basta a possibilidade para então se enfrentar com outros olhos, com olhos de ver na verdade, a questão do falar ou não falar. Com efeito, não é da natureza das coisas que não influencie (e está estudado pelos cientistas destas coisas da cognição, da decisão, da interpretação, da hermenêutica, dos vieses cognitivos, et cetera, que influencia). Aliás, se influencia qualquer um de nós, porque não influencia o decisor becado? Por muito treino, distanciamento, preparação, et cetera que esse decisor tenha, bem como por muitas proclamações constitucionais, legais e corporativas que existam sobre essa suposta não influência, a verdade é que isso é em larga medida apenas wishful thinking, pela razão simples de que o decisor é humano, e essa é uma condição (e uma exigência, bem entendido) inarredável. Acresce que já vi influenciar, e muito, e não há nada mais eficaz para acabar com tabus e lirismos do que a crua experiência da vida e a força amarga da realidade. Também aqui, a vida ensina tanto ou mais do que os livros, ou pelo menos (e já é muito) inspira-os e/ou comprova-os.


         E é também por isso que julgo que o advogado pode – rectius, deve - falar publicamente sempre que julgue que isso pode ser importante também para o próprio caso, na sua perspetiva processual, isto é, quando lhe parecer que – e sabendo-se, ao menos em tese geral, que o “ruido público” pode influenciar o processo – as coisas publicamente estão desequilibradas, equívocas, ou precisam de um contributo, de uma posição, do que seja, no sentido daquilo que são (para além da dimensão extraprocessual) as exigências da defesa (também) processual do seu cliente e do seu caso.


Em suma, falar ou não falar? Sim, na esmagadora maioria dos casos com relevância pública. Por razões extraprocessuais e, também, por razões processuais muitas vezes. Procurando fazê-lo com senso e com sensibilidade, mas também com a coragem que ser advogado exige como condição necessária e essencial até. O advogado é escolhido pelo cliente, e não tem de o aceitar, mas se o faz tem de estar à altura, e quando os processos têm uma dimensão pública estar à altura também se aplica a essa vertente. Goste ou não. Concorde ou não com a publicização dos processos. Prefira ou não o antigo recato, outros tempos. As coisas são o que são e não é de advogado virar as costas (salvo se isso for estratégica ou taticamente adequado) ou, pior, meter a cabeça na areia. É o que me parece – salvo sempre, claro, melhor opinião.



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