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Extradição e Mandado de Detenção Europeu

  • Foto do escritor: Vânia Costa Ramos
    Vânia Costa Ramos
  • 12 de abr.
  • 7 min de leitura

Atualizado: 13 de mai.

Por Vânia Costa Ramos

Advogada

Presidente da Associação Europeia de Advogados Penalistas (ECBA)


O que têm em comum os casos de Augusto Pinochet, Carles Puigdemont  e Julian Assange?

 

Todos são casos relativamente notáveis em que as autoridades de vários Estados lançaram mão de prossecuções penais, mas os visados se encontravam no território de um outro Estado e, por isso, foram alvo de processo de extradição ou de mandado de detenção europeu. Em todos eles, até à data, o processo acabou com a não extradição dos visados. No entanto, esta é uma situação relativamente rara na actualidade. Na verdade, em muitos países, dos quais é exemplo Portugal, a maior parte dos processos de extradição acabam com a entrega do visado ao Estado requerente.

 


Mas o que é então a extradição?

 

A extradição pode ser definida como a transferência coerciva de uma pessoa de uma jurisdição para outra, a pedido desta última, através de um procedimento específico e desde que estejam preenchidas determinadas condições, para efeitos de execução de um processo penal ou de execução de uma pena[1]. Neste aspecto, inexistem diferenças – pelo menos de uma perspectiva prática – entre extradição e mandado de detenção europeu.

 


Porque é necessária a extradição?

 

A extradição é necessária pois, ao abrigo dos princípios gerais de direito internacional público, em particular a proibição de ingerência no território de um outro Estado soberano, a jurisdição executiva dos Estados se encontra limitada ao respectivo território. Ou seja, se um Estado lançar mão de um processo penal contra uma pessoa que se encontra fora do seu território, não pode simplesmente actuar através das suas forças de segurança ou polícia, entrando no território do Estado estrangeiro para deter a pessoa e trazê-la coercivamente para o seu território (muito embora tal já tenha acontecido, como no caso de Adolf Eichmann ou de várias pessoas transportadas para a base naval de Guantanamo, ao abrigo do programa de “extraordinary renditions” dos EUA nos pós 11 de Setembro de 2001). Por isso, nestas situações, o Estado que prossegue a acção penal tem de lançar mão de um pedido de extradição dirigido ao Estado “de asilo”, ou seja, ao Estado onde a pessoa se encontra.



E quando pode ser concedida a extradição?

 

Como saberão, o direito penal está intimamente ligado à soberania estadual, sendo o ius puniendi uma das características essenciais de um Estado soberano. Além do mais, a criminalização de condutas é o reflexo da ordem de valores e da mundividência de uma comunidade. Por esta razão, a concessão da extradição implica sempre de certa forma, por parte do Estado requerido, um reconhecimento da soberania ou autoridade do outro Estado e também da mundividência que o direito penal deste último reflecte. Assim, tradicionalmente, a extradição tinha carácter eminentemente político-administrativo e, por isso, a decisão de extraditar caberia, em última análise, ao Executivo (por exemplo, ao rei), nem sempre sendo um processo judicializado. No fundo, estaria sujeita, em derradeira instância, a uma decisão de conveniência política, podendo ser recusada simplesmente por desinteresse do soberano em colaborar com o exercício de poderes soberanos estrangeiros.

 

Actualmente, a extradição tem vindo a evoluir, no sentido de reduzir a margem de intervenção do poder político ou executivo na decisão de extraditar. O mandado de detenção europeu (introduzido pela Decisão-Quadro n.º 2002/584/JAI, de 13 de Junho de 2002) é o exemplo de uma extradição (em muitos países, como o nosso, apodada de “entrega”, por estar eximida àquele escrutínio político-executivo) totalmente judicializada. Hoje, entre Estados-Membros da União Europeia, a decisão sobre a entrega de uma pessoa para ser sujeita a procedimento penal ou cumprir uma pena em outro Estado é tomada por um tribunal, sem intervenção do poder executivo.

 

Nos Tratados mais antigos, a extradição era concedida apenas por um catálogo de crimes expressamente previstos (cf. por exemplo a Convenção entre Portugal e os Estados Unidos da América sobre Extradição de Criminosos, de 1908). Actualmente, pelo menos no espaço europeu, é mais comum as infracções susceptíveis de extradição estarem definidas em função da pena aplicável, excluindo infracções de carácter político ou militar (cf. por exemplo a Convenção Europeia de Extradição, de 13 de Dezembro de 1957, celebrada no âmbito co Conselho da Europa, mas aberta à ratificação por Estados terceiros – a África do Sul, é, por exemplo, Estado-Parte). Em qualquer caso, um princípio tradicional da extradição é o princípio da dupla incriminação: o Estado requerente só extraditará alguém por condutas que sejam também criminalizadas ao abrigo do seu direito penal. Esta é uma das grandes diferenças entre a extradição dita clássica e o mandado de detenção europeu: neste foi aprovada uma lista de 32 infracções (ou, mais propriamente, domínios de criminalidade) para os quais se assumiu que existiria um consenso quanto à respectiva dignidade penal e que, por isso, desde que punidas no Estado de emissão com pena de pelo menos três anos de prisão estariam isentas do controlo da dupla incriminação.

 

Em muitos Estados, nomeadamente os de matriz continental europeia, é proibida a extradição de nacionais (cf. por exemplo o artigo 33.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa). Esta proibição não existe, todavia, em grande parte dos países de matriz anglo-saxónica (por exemplo, os EUA, ou o Reino Unido). O mandado de detenção europeu operou uma verdadeira revolução nesta matéria, uma vez que aboliu a nacionalidade como causa de recusa de entrega entre Estados-Membros da UE. Actualmente, nada impede um cidadão português de ser entregue ao Reino de Espanha ou à República a Lituânia, para procedimento penal ou execução de uma pena. No entanto, o regime do mandado de detenção europeu permite que os tribunais dos Estados-Membros da União Europeia recusem a entrega de um seu nacional ou de um nacional de outro Estado-Membro para efeitos de execução de pena, quando assumam a obrigação de execução da pena imposta no outro Estado-Membro. Igualmente, em caso de um mandado de detenção europeu para procedimento penal, poderão os tribunais exigir uma garantia de que o outro Estado-Membro, encerrado o procedimento penal, entregue a pessoa procurada ao Estado-Membro da sua nacionalidade ou residência para cumprimento da pena.

 

Em caso algum poderá, através de uma extradição, ser violado o princípio de direito internacional público do non refoulement (não repulsão), segundo o qual é proibida a extradição (ou expulsão) quanto exista risco de perseguição, tortura, tratamento desumano ou quaisquer outras violações de direitos humanos, em função da raça, religião, nacionalidade, grupo social opinião política (cf. Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, de 1951, e artigo 33.º, n.º 6, da Constituição). Inclusivamente no âmbito do mandado de detenção europeu, onde inicialmente era afirmado que entre Estados-Membros da União Europeia não era possível invocar motivos de recusa fundados em violações de direitos humanos, o Tribunal de Justiça da União Europeia veio a reconhecer que em certos casos, nomeadamente os de violações sistémicas de direitos humanos por força das condições desumanas e degradantes nos estabelecimentos prisionais do Estado de emissão, o Estado de execução poderia recusar a entrega. Jurisprudência estendida a outras situações de violação de direitos humanos ao longo dos últimos anos. Algo que, de resto, pelo menos para alguns, era expectável, tendo em conta a jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos em matéria de extradição.

 


Como se inicia um processo de extradição?

 

Na maior parte das vezes, pelo menos nos Estados que dão efeitos directos aos pedidos de cooperação policial internacional, o processo de extradição começa com uma detenção ao abrigo de uma “notícia vermelha”(o famoso “red notice” emitido pelo Secretariado-Geral da INTERPOL).


Após esta detenção, o Estado que pretende obter a extradição terá de apresentar o pedido de extradição com a documentação necessária. Para que a extradição possa ser concedida, o Estado onde a pessoa visada se encontra – Estado requerido (ou, no mandado de detenção europeu, Estado de execução) – procede a uma análise do pedido apresentado pelo Estado requerente (ou, no mandado de detenção europeu, Estado de emissão), para verificar se, de acordo com os instrumentos internacionais e o direito interno aplicáveis (por exemplo, em Portugal, para além da Constituição, a Lei n.º 144/, 99, de 31.08; ou a Lei n.º 65/2003, de 23.08, para o mandado de detenção europeu), a extradição pode ser concedida.


Se se tratar de um processo que não é entre Estados da União Europeia, existirá também uma fase de apreciação política, da competência do executivo. Esta ocorre, normalmente, depois do processo judicial. Mas em Portugal a situação é diferente:: a decisão política é tomada apenas antes da decisão judicial, aspecto que a meu ver não é positivo.

 


É importante o papel do advogado ou advogada no processo de extradição?

 

Os processos de extradição são muito céleres, complexos, e neles está em causa a liberdade de alguém e uma das medidas mais impactantes que podemos equacionar: a retirada de uma pessoa – que muitas vezes tem o seu centro de vida no Estado requerido, e nem domina a língua do Estado requerente – e a sua entrega coerciva a um outro Estado para ser julgado por crimes perante a justiça estrangeira, segundo regras diferentes, com penas diferentes, e com um sistema prisional também por vezes muitíssimo distinto.


Por isso é essencial a assistência por profissionais qualificados. Qualquer advogado ou advogada que queira trabalhar nesta área necessitam de ter experiência relevante (não há tempo para estudar as matérias complexas nos prazos previstos na lei de extradição), conhecimentos de direito europeu e internacional e da jurisprudência dos tribunais e comités de direitos humanos internacionais, dominar línguas estrangeiras, e estar disposto a trabalhar noite e dia.


Para quem se iniciar um dia nestas matérias, recomendo a leitura do manual preparado pela European Criminal Bar Association (ECBA), totalmente gratuito, disponível para descarga como ebook, ou acessível no telemóvel em formato próprio, escrito precisamente para quem não tem ainda muita experiência: “How to Defend a European Arrest Warrant Case – ECBA Handbook on the EAW for Defence Lawyers




[1] Miguel João Costa, Extradition Law – Reviewing Grounds for Refusal from the ClassicParadigm to Mutual Recognition and Beyond, 2019, p. 4.

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